quinta-feira, setembro 22, 2011

RUI LAGE: Um arraial de poesia num Portugal profundo













JÁ PASSOU A PROCISSÃO

Descamam as telhas sob o sol
punitivo, zunem fios de alta tensão,
a pele do empedrado tremeluz
(pois é lá que tudo ondula).

No pátio salivam mangueiras
de abraço constritor, a canícula
ferve cascas de melancia, brilham
botijas de gás no xisto mendicante.

Nas escadas alinhados
quais peças de artilharia,
um por degrau refulgem,
entre os versos,
os instrumentos da filarmónica.

No ouro da tuba cabe o reflexo
do velho cão de companhia,
a gata reluz tubular
na esguia prata do clarinete.

Depostas sobre a toalha
as boinas brasonadas
e de húmidos círculos estampado
o sovaco das camisas,
oponíveis polegares calejam
copos de tinto em formatura

e não te é dada permissão
para vestires blusa mais fresca,
não venha teu seio chamar-se
um figo sobre a mesa.

(Um Arraial Português, 2011)




Aqui está um funcionamento de certas sátiras que se oneilam para bem e ainda bem.

quarta-feira, setembro 07, 2011

Camilo Castelo Branco mandado às urtigas





funcionamento da exclusão do escritor dos programas do ensino secundário:

Terá sido pelos amores e perdições? Terá sido pela universalidade? Terá sido pela incapacidade de escolher as suas obras, contextualizando-as e caracterizando um passado histórico que nos antecede e enforma?




(...)
O leitor urbano mal imagina como são estes pais e maridos rurais quando lhes morrem as filhas ou as mulheres. Os mais lúgubres, se estão seis horas no forçado jejum a que os obriga a funeral lareira apagada, começam a cair num sentimentalismo de burros com fome. Nunca vi uma lágrima luzir nestas caras. Às vezes, morrem mães que deixaram um grupo de crianças ali a chorar num canto da cozinha. Os viúvos olham para os pequeninos de través, e ralham-lhes brutalmente. A estupidez é mais valente que a morte. Se falta a luz que adelgaça e rompe a treva do homem bárbaro, à mistura com a velhacaria que a civilização lhe tem dado, o cérebro e o coração são umas empadas de massa inerte, umas substâncias granulosas ou fibrosas contidas em sacos membranosos. Não há nada mais bestial que o homem sem a alma que se faz na educação. (...)



"Maria Moisés", Novelas do Minho


(crédito de imagem da cadeira de CCB - cercarte.blogspot.com)