domingo, junho 26, 2005

sem sentido

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colagem A. Ferra - 2004

Perder os sentidos

Na sala de curativos, logo à entrada daquele hospital, o homem gemia ai, ai, que a vida é tão bonita. Aparentava uns cinquenta anos, era magro, vestia uma camisa azul e uns jeans coçados, de má qualidade. Estava deitado numa marquesa, de barriga para o ar, o rosto transpirado. Depois dizia coisas descontextualizadas, a casa, as maçãs, a Tininha, o armário branco, dá de comer ao cão. Era um amontoado de palavras presas por um linha muito ténue. Eu, que ia ter com um médico para me ver uma ferida recorrente, guardei aquilo no ouvido - ai, ai, que a vida é tão bonita -, e o amontoado de palavras.
Uma pessoa fica tão indefesa quando está deitada num hospital! Principalmente quando tem que se despir, quando perde a protecção que a roupa dá, ou quando perde aquela linha muito ténue que serve para dar sentido às palavras isoladas. Então, indefesa, uma pessoa pode ser quase recém-nascida, esbracejando um chorrilho de palavras soltas. Permanece sob uma ameaça caótica.

quarta-feira, junho 22, 2005

retrato baço

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O monitor é branco. E as teclas, na pressão fluida e fácil, nas palavras deslizando dedos. Uma inclinação suave do corpo sobre a máquina, e domina-se a luz que fere os olhos. Dá-se um nome a uma personagem, inventam-se segredos. Mas nem sequer o mistério é definitivo, quando é gravado, ainda quase invisível.
Porque, de longe, um retrato desfocado mantém o sonho aberto, a prosa renovável.

estores, persianas, tudo gelosias

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Reparam-se estores

Bem sei que existem vários processos de coar a luz. O estore, a persiana, é um processo possível. Também se usa o termo gelosia, uma forma antiga e muito curiosa, pois aproxima-se de ciúme em várias línguas. Se a persiana não me desperta ciúme, desperta-me, pelo menos, uma certa inveja daqueles que têm o know-how suficiente sobre o seu funcionamento para abrirem aquela caixa situada sobre a janela, enrolarem ou desenrolarem a persiana propriamente dita, acertarem as réguas, enfiá-las nas calhas laterais, se for caso disso, ou verificarem o estado da fita feita daquele material que apenas se vê nos estores.
Eu sei que há persianas sofisticadas, persianas de manivela, persianas eléctricas.
E, quem sabe? persianas para as quais basta um olhar e elas adivinham o nosso estado de alma, ora mais exigente da ausência de luz, ora mais carente da luminosidade íntima das madrugadas na cidade.


PS - Sobre este assunto, como sobre tantos outros, recolhi o que respigou o meu amigo JMM:

estore, do fr. “store” - Rideau de tissu ou panneau en lattes de bois, de plastique, etc., qui se lève et se baisse devant une fenêtre, une devanture. (italien stora, natte). (Petit Larousse)
Só que hoje a palavra não existe em italiano actual: evoluiu para “stuoia” ("tessuto di giunchi, di sparto o altro, da usare come tappetto, etc") e provém do latim “storea”, ou storia, “esteira de junco ou corda”, diz o velho dicionário do Torrinha.

persiana, do fr. persienne - Contrevent fermant une baie, en une seule pièce ou composé de plusieurs vantaux, et comportant (à la différence du volet, plein) un assemblage à claire-voie de lamelles inclinées qui arrêtent les rayons directs du soleil tout en laissant l'air circuler. (Petit Larousse)

gelosia, do it. gelosia (region.) serramento della finestra che permette l'aerazione e l'illuminazione parziale dell'interno, impedéndone però la vista dall'esterno;
persiana piccolo sportello, praticato nella parte inferiore di una persiana, che si apre verso l'esterno (Diz Garzanti, versão internet) E diz o Novissimo (1961) Dizionario Palazzi della Lingua Italiana: perche l'uso (da gelosia) è attribuito a ragioni di gelosia (ciúme)... [itálicos meus]

segunda-feira, junho 20, 2005

Corta as coisas inúteis

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Inutilia truncat

Um meio braço pegando em um podão com a epígrafe – Inutilia truncat – será empresa da Arcádia, por ser este o instrumento com que os agricultores cortam das árvores os ramos secos e viciosos; (... )

do Capítulo II dos Estatutos da Arcádia Lusitana, sec. XVIII



1. Há na atitude minimalista uma intenção explícita de denúncia da sociedade de consumo. Isto acontece desde fins dos anos cinquenta e princípios dos anos sessenta, quando aparecem artistas plásticos que utilizam objectos ou restos de coisas que a sociedade de consumo rejeita.

O minimalismo utiliza o essencial, não se perde em muitos acessórios. Tal como certas peças musicais que, nessa intencionalidade, foram construídas a partir de cinco notas apenas, sendo assim a matéria reduzida ao mínimo, tal como os escritores neoclássicos que acharam por bem limpar muita talha barroca da literatura. Sobretudo tralha barroca.
Alguns reuniram-se em academias, como a Arcádia Lusitana. No fundo estavam a imprimir um cunho fortemente racional à exuberância levada aos extremos. No entanto, e ao contrário daquilo que pode sugerir o Capitulo II dos estatutos daquela academia, a preocupação minimalista pode levar ao aproveitamento de um ramo seco. Ou de uma folha seca, porque se acha bela, porque se acredita que vale a pena aproveitar o que existe sem se consumir aquilo que foi feito para consumir-apenas.

2. Eu vivo na minha dualidade entre o minimal e o gosto por uma boa poesia de circunstância. Seja ela o’neillada, seja ela “Ao menino Jesus em metáfora doce” ou outros versos de Jerónimo Bahia, “A minha bela ingrata/ cabelo de ouro tem, fonte de prata, (...)”
Mas o corte das coisas inúteis imprime uma enorme disciplina interior. Enquanto estou a escrever este texto vigio-me, não me quero exceder, fujo das tricas que levaram à extinção da Arcádia, embora não resista em reflectir sobre a possibilidade de as alienantes touradas do século XVIII terem tirado a certo escol académico a disponibilidade para estes serões literários. Mesmo a justa causa do terramoto de 1755 também pode ter tirado clientela à tertúlia da Arcádia.

3. Sou, então, levado a pensar no uso discreto dos adjectivos, cobrindo de qualidade substâncias que às vezes valem por si próprias, sem adereços, ou na força dos verbos que nos levam.
Inutilia truncat - corta as coisas inúteis - tal como deito fora móveis velhos, manuscritos que tiveram o seu uso - bom proveito - roupa que já não me serve. Penso na determinação dos períodos curtos na prosa narrativa, um sinal de que alguém tem alguma coisa, de facto, para contar, sem precisar de se perder nas palavras tantas vezes inúteis.

Porque, às vezes, são inúteis as palavras.



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sábado, junho 18, 2005

soldadinhos de chumbo

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Quando eu tinha seis ou sete anos, brincava, às vezes, com uns soldadinhos de chumbo que estavam guardados no sótão. Eram do meu pai, acho que foi o meu avô que lhos deu, quando ele era pequeno. Então, eu alinhava-os e preparava-os para os pôr a marchar.
Mais tarde haviam de servir para brincar com a memória, sem a conseguir alinhar por capítulos.
A memória é um todo onde moram ontens.

sexta-feira, junho 17, 2005

o cheiro das cidades

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À volta daquele jardim, junto ao mercado há uma fila de lojas, sem casas por cima. De manhã, o cheiro da comida dos cafés e das tasquinhas lembram o cheiro das lojas do mesmo tipo em Londres. E mais londrino ainda é o clima, neste dia enevoado, porque uma mulher espreita para dentro de uma loja de produtos dietéticos e traz consigo um cheiro a cremes de beleza e a fritos da Índia. Esta mistura levou-me a um lugar exótico que nada tem a ver com os cheiros da Lisboa habitual.
As cidades também cheiram, mas, por vezes, atraiçoam-se.

Autoclismos III

as bóias
1. Quando descobri um Kit que substituía o sistema interno de bóia com esferovite, senti-me, por minutos, um pouco defraudado, pois acreditei que toda a minha teoria tinha sido descoberta em vão, tal como as horas de observação do respectivo funcionamento. A tecnologia, por vezes, ultrapassa-nos enquanto criadores de novas maneiras, fragiliza e desencanta o homem, quando acredita na sua capacidade ser o único inventor.
Há quem diga que as grandes feridas narcísicas da cultura ocidental começaram com Galileu – a terra não é o centro do mundo –, seguiu-se Darwin – o homem não descende de Adão e Eva, mas sim de “macacos” –, e depois Freud – o inconsciente existe. As tecnologias da informação vêm ferir também o narcisismo, na medida em que transmitem ao homem a sua incapacidade de controlar aquilo que produz. É o que nos mostra Kubrick, em “2001, Odisseia no Espaço”, passe o velho exemplo. Ao mesmo tempo, esta tecnologia aglutina o ser humano, ao dizer-lhe que há verdades válidas para os quatro cantos do mundo e não apenas para a Europa Ocidental. Esta concepção globalizante, em devido tempo sinalizada por Mcluhan, coloca-nos a questão da análise do texto poético em função do local e da cultura onde ele é produzido. Como lidar com um etnocentrismo que sempre nos tem acompanhado, já que abdicação consciente desta premissa, implica a aceitação do outro e dos outros? Afinal trata-se da difícil aceitação das diferenças e da deslocação da autoridade para diferentes espaços.


2. Ao fim de alguma observação do funcionamento de vários autoclismos, chego à conclusão de que o meu conhecimento sobre este aparelho é muito limitado. De facto, quando começamos a ter dúvidas sobre as coisas é um sinal que já sabemos alguma coisa. Porque quem disser que sabe tudo engana-se. Uma coisa é certa – a experiência, ainda que insuficiente para perceber as coisas - é a «madre de todalas cousas.» Mas é uma longevidade relativa (pode atingir-se a longevidade aos vinte e cinco anos...por exemplo) que nos permite a compreensão e a vivência da efemeridade, porque toda a inovação tecnológica é efémera, como as bóias dos autoclismos.

o lugar dividido

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O problema é perder o sol e não sentir o mar nas mãos, deixar secar o tempo sem o poder ingerir no trânsito do céu.
A emergência das manhãs atraiçoadas pelo sono, a glorificação dos ideais, a planificação das estradas e dos rios, a rouquidão dos anjos, a requalificação dos dias, nada que passa aperfeiçoa a mágoa, a pertinência da terra, o lugar dividido.

quinta-feira, junho 16, 2005

Questionante

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A forma e a localização dos comércios

1. O comércio local de certas zonas da cidade, o comércio de bairro, tenta resistir à padronização do franchising. Por pouco tempo. Não é pela qualidade dos produtos, não, é mais na relação entre as pessoas, na relação vendedor comprador. Isto tende a transformar-se, e o privado, às vezes, fica com sabor a público, onde as pessoas são tratadas como utentes desses serviços. Por exemplo, a farmácia onde muita gente, sobretudo mais idosa, se dirige para comprar um medicamento, desabafar, e até para terem consulta gratuita através do conselho do farmacêutico, tende a desaparecer. Hoje entrei numa farmácia de bairro onde, como nas outras, era preciso tirar um senha que numerava a vez de atendimento. Até aqui tudo bem. Mas não é que introduziram uma modalidade absolutamente desnecessária?! Fizeram pequenos balcões e cada senha aparece num visor com o número do balcão de atendimento. Tal qual a Caixa Geral de Depósitos. Não era preciso tanto, conheço muito bem essa farmácia e ela funcionava como deve ser, sem essa treta dos balcõezinhos a armar aos cucos. Depois as relações tornam-se impessoais e frias, num princípio da destruição dos afectos. É também a revelação da ignorância sobre a componente histórica das boticas e dos boticários, esquecida que foi a negação do ócio - o verdadeiro negócio - nec ocio, enfim, a veniaga de que falava Fernão Mendes Pinto. Só se podem fazer boas transformações quando se integram as mudanças numa tradição histórico-cultural.

2. De resto, a relação de oferta e procura determina o modo de atendimento. Por exemplo, numa papelaria que tem tudo e mais alguma coisa, as pessoas são mal atendidas, porque nessa zona a papelaria presta um serviço público muito especial e, que remédio, a população local tem de ir lá, caso contrário terá de se deslocar à baixa de Lisboa ou dirigir-se a um centro comercial só para comprar uma simples caixinha de pionaises.

3. Quanto às formas de atendimento, há muitos factores condicionantes que não se resumem apenas ao norte e ao sul, sendo o do norte, nomeadamente o do Porto, fruto de uma tradição com forte marca do colonizador Britânico, enquanto o outro se centraliza numa certa Lisboa francesa. Ultrapassando o perigo das generalizações, poderíamos dizer com Napoleão «Inglaterra é uma nação de shopkeepers» e entrar numa sucessão de contrários do tipo França-Inglaterra, Norte-Sul...
Quantas vezes, para nos tranquilizarmos, vestimos as coisas de preto e branco?

ciganos electrónicos

O trompete era uma melancolia de infância no meu bairro. As notas estendiam-se na rua, ecoavam por entre casas baixas. O que mais me surpreendeu foi a partilha do silêncio de certas emoções entre os moradores da rua onde habito hoje. Lembro-me logo do trompete mágico que aparece no filme “Rio Bravo”, do Hawks, acordando o Dean Martin para a realidade do álcool.
Lá em baixo, o cigano de bigode e cabelo preto brilhante tocava, imóvel, com muita precisão, sem falhar uma nota, junto ao microfone do trem que transportava um sintetizador, uma bateria de automóvel e um microfone incorporado. A sua companheira, de cabelos pretos, olhava à volta, com um cesto na mão direita onde recolhia donativos. E não era pedinchice, pelo contrário, as pessoas é que vinham à janela e chamavam-na para pagarem o serviço sem preço fixo. A mulher sorria com a boca e os olhos, numa expressão de prazer. Até o homem do “lugar de fruta” daqui da rua, aparentemente tão empedernido perante este conjunto romântico, lhes levou um saco de maçãs.

quarta-feira, junho 15, 2005

in branco no branco, Eugénio de Andrade

É um lugar ao sul, um lugar onde
a cal
amotinada desafia o olhar.
Onde viveste. Onde às vezes no sono

vives ainda. O nome prenhe de água
escorre-te da boca.
Por caminhos de cabras descias
à praia, o mar batia

naquelas pedras, nestas sílabas.
os olhos perdiam-se afogados
no clarão
do último ou do primeiro dia.

Era a perfeição.

efémero objecto construído com restos calcinados de um efémero hotel

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(...)
Caminhei cerca de três horas, com poucas paragens. Lembro-me de ver uma espécie de antigo posto de controlo da polícia, envidraçado, que mais tarde vim a saber que era conhecido pelo “açucareiro”. Fui até ao aeroporto, mas o meu fito era outro. Ver as ruínas do “Hotel do Aeroporto”, que ardeu em 1998. Estavam a construir um hotel novo sobre as cinzas. Ainda encontrei e recolhi alguns restos chamuscados, pedacinhos de madeira, vidros calcinados daquele que era também conhecido por “Casa do Vidro”, ou “The Gink”, ferragens variadas, pedacinhos de alcatifa, parafusos e pregos... (diário de Santa Maria, Açores,julho de 2001)

Os efémeros

Uma tábua de cinquenta por setenta pintada de branco. Tinta plástica branca para exteriores dada de maneira a ficar estendida o mais uniformemente possível. Sobre esta superfície colo um rectângulo de cartão pardocento, aquele cartão das
embalagens de quase tudo, variando ligeiramante no tom dos pardos e dos ocres. Aqui, vou dispondo as peças por tempo indefinido – sobre um, uma lata; sobre outro, uns fios de arame, ou um bocado de esferovite ou papel. Nestes objectos utilizo principalmente cores ligadas à terra, ocres, brancos sujos ou limpos, e ligeiros pretos. Como todos estes materiais são muito pobres, a duração de cada quadro-objecto não poderá ser longa, o tempo tomará conta dos prazos. A estes trabalhos chamo-lhes efémeros - os efémeros! - e sei que os irei destruir daqui por algum tempo, a fim de criar espaço para outros.
Quanto tempo dura a obra de arte palpável? Há objectos artísticos que tem milhares de anos em cima devido aos materiais que foram utilizados e à situação de protecção em que permaneceram. Mas há obras de arte que podem demorar poucos minutos, como um fogo de artifício, a execução de um peça musical, um anúncio publicitário. E nem por isso deixam de ser objectos artísticos, objectos artísticos de curta duração. A combinação de peças de roupa, o arranjo de móveis e objectos dentro de um casa, são uma forma de ready-made que “eu” recolho e ofereço, quando tomo a atitude de lhes conferir o estatuto de obra de arte, numa certa concepção de efemeridade onde o olhar se orienta na fruição e participação criativa. O mesmo se pode passar com um olhar expressivo, com a sedução de um sorriso. De resto, efémera é a vida e mesmo as pirâmides do Egipto duram relativamente pouco tempo. O tempo e o espaço tem outro valor e atingiram um preço muito elevado, numa economia própria, bem diferente da economia subjacente à do tempo dos construtores das catedrais. A concepção de arte varia com a densidade populacional – espaço – e com a esperança de vida – tempo.
E com a insegurança de vida.

autoclismo II

As considerações sobre o funcionamento de um autoclismo estão, de certa forma, desactualizadas. Acontece que os autoclismos de bóia tendem a desaparecer, sendo substituídos por outros equipados com uma válvula movida por um êmbolo hidráulico. Isto é, a água é interiorizada num compartimento paralelepipédico, longitudinal, e a impulsão da própria água é que vai fechar o orifício de entrada ligado ao cano exterior de fornecimento de água. Assim lhe fica uma força interior ditada por mãos humanas que controlam o mecanismo, por defeito. Tal como a sístole e a diástole nos acompanham durante a vida, nos momentos de recolhimento e de exteriorização.

(continua num próximo post)

figura de estilo

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e a propósito das figuras de estilo, ela disse-me que, no fundo, só existia uma, a metáfora. Tinha razão, mas aquela observação caiu-me cá dentro duma maneira! De facto, uma hipérbole, em certo sentido, também é uma metáfora. Depois lembrei-me de umas coisas que há anos tinha lido num livro do Ortega y Gasset, “La Deshumanización del Arte”, em que ele dizia “a metáfora radica no tabu”. E explicava e desenvolvia esta ideia, isto é, por uma questão de tabu não é mencionada a coisa, tal como acontecia nas civilizações “ditas primitivas” Em vez da coisa menciona-se outra que a substitua, com valor semelhante, analógico, comparativo. A própria linguagem humana, é uma metáfora, segundo Eugenio Coseriu, em “O homem e a sua Linguagem”. Embora ele não faça esta afirmação de modo peremptório, deixa entender tal possibilidade. Sobretudo quando fala na metáfora contida no eufemismo, nomeadamente no que se refere à morte.

terça-feira, junho 14, 2005

as palavras e os gestos

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as palavras e os dias

Por vezes aquilo que queremos dizer é quase imperceptível. A precisão das palavras dissolve-se num painel de gestos automáticos. Cria-se um fosso ainda maior entre aquilo que se quer dizer e aquilo que é percebido. Perante um texto, cada um lê o que quer e pode.

- Não, eu não queria dizer isso.
- Mas foi isso que disseste.
- Não, foi isso que querias que eu tivesse dito.

segunda-feira, junho 13, 2005

branco no branco

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domingo, junho 12, 2005

a tinta da china

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corpo

O corpo é um engano. Tanto permanece mole nas manhãs de verão, como acende os dedos nas ruas da cidade que me sustenta.

De manhã, um cheiro a café entrava-me pela memória dentro, eram cheiros antigos, uma tontura de prazer, e depois ficava parado no meio da cozinha.
O sol iluminava o interior da marquise voltada para um imenso jogo de telhados, eu seguia o percurso das árvores num jardim perdido.

sábado, junho 11, 2005

olhar suburbano I

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autoclismo I

Um autoclismo é um aparelho que faz parte integrante de uma casa de banho. Vale a pena observá-lo por dentro com muita atenção e muita curiosidade. Trata-se de um aparelho que revela a inteligência da espécie humana, usando processos mecânico-hidráulicos.
Se lhe tirarmos a tampa, deparamos com uma caixa de água. É este o primeiro olhar. Lá dentro está um tubo, por onde entra água após a descarga feita. Depois, quando a água entra novamente para recarga, ela pára ao atingir certo nível, regulável, porque uma bóia de esferovite, empurrada pela impulsão da água que sobe no caixa do autoclismo, bloqueia o tubo por onde sai a água que circula na canalização geral. Funciona como uma torneira. A muito baixa densidade da esferovite é que permite uma oclusão rápida e eficaz. Antes da existência da esferovite as bóias eram caixas redondas e ocas, feitas de cobre. O braço de metal ou plástico ao qual se prende a bóia, o tal pedaço redondo ou paralelepipédico de esferovite ou plástico oco, pode ser regulável, como acima dizia. Fixado mais para baixo, entra menos água, porque a ejecção de água termina mais cedo. Se for fixado a um nível superior, ejecta água durante mais tempo, como é óbvio, aumentando assim o nível e o consumo. Neste caso existe sempre um mecanismo de regulação manual.
Uma palavra ainda sobre o processo de descarga: é feita por um orifício existente no fundo da caixa de água, de perímetro (secção) bastante superior ao orifício da entrada de água. Isso explica o tom mais grave e rápido da saída de água para limpeza da sanita, em contraste com o tom mais agudo e lento do reenchimento do autoclismo, mais lento do que a descarga, naturalmente, pelos motivos apontados. Sobre esse orifício (de entrada e saída de água) existe uma junta de borracha, presa ao êmbolo que tapa e destapa o orifício de saída de água. Quando essa junta se torna gasta pelo tempo e pelo uso, diz-se que o autoclismo fica a verter, a desperdiçar água, continuamente, para dentro da sanita.
Há pessoas que não observam estas pequenas coisas úteis a que estamos habituados e fazem parte do nosso quotidiano. E têm todo o direito. Mas às vezes é necessário interrogar o óbvio, a companhia diária dos objectos, feios por serem úteis, sem a utilidade dos versos. O que acabo de escrever não tem directamente a ver com a racionalização do consumo de água, senão até valia a pena dar relevo àquela história de um hotel que resolveu colocar um tijolo dentro de cada autoclismo. Como se tratava de um hotel de grandes dimensões, a poupança anual em água e respectivos custos foi notável, nem vale a pena fazer contas.

sexta-feira, junho 10, 2005

árvore

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poesia e sonho

A poesia, tal como o sonho, desenvolve-se, numa primeira fase, através de um processo primário, utilizando a terminologia de Freud: “No processo primário a energia psíquica escoa-se livremente, passando sem barreiras de uma representação para outra, segundo os mecanismos de deslocamento e de condensação. Tende a reinvestir plenamente as representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo (alucinação primitiva)”...

Depois de “eu” plasmar, por este processo primário o poema sonhado, progressivamente o vou trabalhando por processos secundários, racionalizados.
Acredito, cada vez mais, na inter-relação da poesia com o corpo. A dança livre é também um processo primário, tal como o movimento da amiba. A palavra surge como substituição do corpo, já não é preciso um gesto para designar o que primitivamente se designava (deuten, indicar em alemão) com o corpo. O exercício da palavra irá corresponder ao processo secundário (bedeuten, significar, objectivado pelo prefixo be, em alemão.)
A oposição entre princípio de prazer e princípio de realidade é correlativa da oposição entre processo primário e secundário. Na poesia, o processo primário é esse primeiro passo com o qual se plasma o sonho sobre o papel. Trabalhar o poema, é racionalizá-lo para ser lido por outros. Note-se que, do ponto de vista tópico, o processo primário caracteriza o sistema inconsciente e o processo secundário caracteriza o sistema pré-consciente - consciente.

le cinéma à domicile

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Filmes de 8 milímetros

Quando eu era pequeno não havia vídeo nem DVD. Um vizinho meu, o João, via com a família filmes de 8 milímetros, projectados num ecrã, que podia mesmo ser uma parede branca. Eu apreciava o ar sério do pai do João quando ele se dispunha projectar os filmes. Ficava a sala muito escura, num ambiente de mistério. Nessa altura não havia nada electrónico, era tudo eléctrico, apenas.

Da utilização do mar

Por todo o caminho que contorna a costa, entre a direcção da zona central da rua dos Pescadores e Santo António da Caparica, passeava um casal: o homem aparentava cerca de setenta anos e vestia um fato de linho cru, sapatos do mesmo branco sujo, camisa branca e uma gravata clara. Cabelo grisalho, ligeiramente ondulado e penteado para trás. A mulher aparentava a mesma idade, vestia um conjunto castanho de um tecido leve, uma espécie de túnica que ondulava com o vento, umas calças soltas a apertar no tornozelo, caindo sobre sapatos em beije de ligeiríssimo salto; o cabelo estava meticulosamente penteado para trás, liso, castanho escuro; a pele cuidada e a maquillage eram perfeitas, baton quase carmim sobre pele lisa e rosada de cremes.
Os dois muito bem articulados, condizendo um com o outro, caminhavam a passo certo por aquele picadeiro marginal, o mar ao lado, sem excesso de sol, quase fim de tarde, Setembro tranquilo, um pouco húmido.

No dia seguinte estava na praia estava um homem que aparentava pouco mais de cinquenta anos. Caminhava de um lado para o outro, próximo do lençol de mar que se desfaz em espuma. Vestia umas calças cinzentas escuras, um pouco brilhantes ao sol que se ia afirmando, às onze da manhã, calças impecavelmente vincadas. Calçava sapatos pretos de atacadores, bem engraxados, não queria molhá-los enquanto pisava a areia fina, junto à espuma da mansa rebentação. Estava em tronco nu!
Decidi não comentar estes dois quadros. Nem sequer fantasiá-los. Fica-me a imagem contrastante de duas maneiras de usar o mar.

mar

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a lâmpada que ilumina as histórias

Tive muito trabalho para fotografar esta lâmpada. Descobri, para minha surpresa, que não tinha destas cá em casa. Para iluminar histórias apenas havia lâmpadas de halogénio, fluorescentes ou de poupança – aquelas muito feias, brancas e compridas. Fui comprar esta a um casa de artigos eléctricos e o dono da loja perguntou-me «de quantos watts?» E eu disse-lhe «tanto faz» Ele ficou muito espantado e perguntou-me se uma de sessenta servia.
A partir daqui nasceram várias lâmpadas desenhadas que trabalhei num programa de imagem. Sempre iluminam melhor as histórias.

a lâmpada que ilumina as histórias

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